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11 de fev. de 2016

Serge Gainsbourg é um dos meus artistas favoritos. Acho maravilhosa sua trajetória errática e pontuada por momentos brilhantes. Sem falar daquela sensualidade quase onipresente que vai muito além do clichê "Je t'aime moi non plus". 

Por causa dessas características, a discografia do francês é uma fonte inesgotável. Cada audição revela uma sacada genial, uma provocação ou as duas coisas ao mesmo tempo. Poderíamos relembrar aqui "Histoire de Melody Nelson", o álbum mais influente e "sério" de Serge, mas quero falar do controverso "Love on the beat", lançado em outubro de 1984. 

De cara, temos Serge Gainsbourg maquiado como uma drag queen na capa. Ele dizia que parou de beber por duas semanas só para diminuir as olheiras e conseguir a foto icônica que dá pistas sobre temas centrais do álbum: sexo, homossexualidade e prostituição.  

Achou pesado? Sim, "Love on the beat" é sexualmente explícito, raivoso, um escândalo que só poderia mesmo vir de Serge. Foi seu primeiro álbum gravado nos Estados Unidos, mais precisamente em Nova York, e ele estava visivelmente influenciado pela cidade. O livro "Um punhado de Gitanes", de Sylvie Simmons, traz algumas declarações do compositor sobre o período. "A música de Nova York é pesada, então tenho que me adaptar", explicou. "Os jovens não têm mais medo das palavras, nem das ideias. Tenho que me adaptar, é uma necessidade intelectual".

Serge também não tinha medo das palavras. Aliás, foi sua habilidade de brincar com elas que lhe rendeu o reconhecimento de estudiosos da língua francesa. No título do álbum temos um trocadilho que revela o espírito das canções. A palavra "beat" soa como "bite", pênis em francês.



Musicalmente, o trabalho não traz grandes inovações, mas apresenta uma mudança radical na carreira de Serge, que vinha de uma bem sucedida incursão pelo reggae, ou "freggae", como os franceses chamam o ritmo jamaicano produzido no país. O som é uma mistura de funk, rock e eletrônico com teclados e saxofone conduzindo a maioria das faixas. Tudo em sintonia com a proposta urbana e suja das letras.

A produção de "Love on the beat" ficaria a cargo de Nile Rodgers, mas uma incompatibilidade de agenda não permitiu o encontro. Billy Rush, que havia trabalhado com o guitarrista do Chic, encarou a missão.

A faixa-título é o cartão de visitas: desbocada, dançante e agressiva. O clima é de sexo selvagem, com Bambou, última companheira de Serge, gritando de prazer (e dor?) ao fundo. Seria "Love on the beat" uma "Je t'aime moi non plus" ainda mais explícita? Como diz um blog que li antes de escrever este texto, são oito minutos para rivalizar com Marquês de Sade!

Entre as músicas que tratam sobre homossexualidade estão "Kiss me, Hardy" e "I'm the boy". A primeira é baseada nas últimas palavras do almirante britânico Horatio Nelson, lembrado nos livros de história pelas vitórias contra Napoleão Bonaparte. Ele teria dito "Beije-me, Hardy", em tom de ordem militar, para o fiel assistente Thomas Hardy. 



"I'm the boy" insinua que o personagem da música é um jovem gay que se prostitui. A melodia é inspirada na composição erudita "A sagração da primavera", de Igor Stravinsky.

A referência erudita também aparece em "Lemon incest", com trechos de "Estudo Opus 10, nº. 3", de Frédéric Chopin.

Misturar erudito e popular não é novidade, mas há uma ousadia evidente nas duas faixas. Os mais puritanos não devem gostar de ouvir seus compositores prediletos embalados naquela atmosfera tão profana... Em 1984, Serge Gainsbourg ainda era um provocador nato. De quebra, arrisco dizer que ele inspirou a disseminação dos samples na música pop. 

"Lemon incest", no entanto, é mais conhecida pelo escândalo que causou na época. Serge canta com sua filha Charlotte Gainsbourg, de 13 anos. No clipe, eles dividem uma cama, mas o suposto incesto é negado no verso "L'amour que nous n'f'rons jamais ensemble" ("O amor que nunca faremos junto"). Precisa dizer o problemão que isso rendeu?


"Ele não resistiu a fazer uma canção de amor para Charlotte, para exibi-la ao mundo, além de fazer um trocadilho com lemon zest [raspas de limão], ao som de música clássica. É claro que ele sabia que estava provocando, mas ficou horrorizado que as pessoas pudessem pensar que..." - Jane Birkin, ex-esposa de Serge e mãe de Charlotte, nem consegue completar a declaração que está no livro de Simmons.

"Sorry angel" é misteriosa e triste. Ela fala sobre suicídio e culpa em levada hipnótica. Curiosamente, ela vem logo depois de "Love on the beat", faixa violenta que só rivaliza com "Harley David son of a bitch", um rock vazio mas de refrão forte.

"Love on the beat" não é o melhor álbum de Serge Gainsbourg - a produção dos anos 60 e 70 é insuperável! - mas, de forma conceitual e ousada, entrega o que promete na própria letra da faixa-título: um choque de 6 mil volts!

Músicas:
"Love on the beat"
"Sorry angel"
"Hmm hmm hmm"
"Kiss me Hardy"
"No comment"
"I'm the boy"
"Harley David son of a bitch"
"Lemon Incest" (com Charlotte Gainsbourg)

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